quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

UMA NOITE

Saí de casa depois de insistir comigo mesmo. Apesar do leve incômodo na cabeça resolvi sair por motivos não incomuns às pessoas. Uma comemoração de aniversário de uma amiga, pois bem, eis que me arrumo e saio correndo para não me atrasar. Gostaria de chegar lá até as 21hs para pegar a entrada franca. Alguns leitores talvez se perguntem que tipo de festa tem a entrada franca até esta hora, outros talvez não se perguntem, mas para ambos digo que mais tarde explico melhor. Fui apressado ao ponto de ônibus, com apenas dez reais no bolso e teria de pagar a conta no cartão e sobrar algo para a volta. Vida de pobre é um saco na hora de se divertir. A van demorou um pouco, mas fui sem maiores problemas, minha amiga havia ficado de me ligar quando chegasse ao local combinado, eu acabei cochilando no caminho e ela não ligou. Pelo menos desta vez cheguei com facilidade, algumas pessoas sentadas em mesas de barzinhos vizinhos, mas nenhuma cara conhecida. A cidade estava num calor típico desta época do ano. Constatei que ela não estava lá me esperando ainda e era cedo para chegar outra amiga que eu havia convidado também. Resolvi procurar um caixa eletrônico para sacar algum dinheiro e pôr créditos no meu celular também. Andei até a Rua da Assembléia para encontrar uma agência, mas estavam retirando os caixas eletrônicos, então andei algumas esquinas para a direita e finalmente achei uma na Avenida Presidente Vargas, bom já tinhs algum dinheiro não mão, agora precisava de créditos para saber onde anda esta mulher que ainda nem me ligou. Caminhei até a única banca de jornal aberta que vendia créditos para celular na Cinelândia sentindo minha cabeça latejar a cada passo. Já lamentava tudo que acontecera até ali e raspava a numeração do cartão quando meu celular tocou, era minha amiga aniversariante dizendo que tinha acabado de chegar à Praça XV, já tinha no mínimo uma hora que eu havia chegado e só agora que finalmente andei feito um corno para comprar os malditos créditos é que ela me liga. Só rindo. Encontrei com ela na entrada, era uma festa liberal. Isso mesmo, uma festa liberal numa casa especializada no assunto, quem não gosta muito destas coisas pode para de ler por aqui. Voltando à minha noite... Nós tínhamos marcado de entrar como casal, mas ela já havia sido registrada com outro rapaz, que trouxe uma amiga dela e lhe deu carona, disse que foi empurrada para ele pela amiga oportunista. Nestas festas casais costumam pagar mais barato, sendo casais reais ou não, e solteiros sempre são os que pagam mais caro, muito mais caro e eu não tinha dinheiro para isso. Não deu nem para rir. E ainda tinha uma dor de cabeça que atrapalhava mais ainda. Ficamos um tempo conversando lá fora e ela não conseguiu nenhuma amiga solteira lá dentro ou na porta que pudesse entrar comigo. Um tempo depois puxamos assunto com um paulista que procurava o mesmo ali na frente para entrar, e depois um jovem com sotaque mineiro. Eu me sentia nos três patetas, à deriva vendo os casais entrarem para a diversão. Tentamos convencer três amigas sentadas no bar vizinho, todas lésbicas, mas entrariam conosco numa boa. Pensei: Ufa! Achei que a noite seria de todo ruim, mas agora finalmente vou entrar. Mas não era a hora ainda, duas foram convencidas mas uma delas, a linda morena de olhos azul piscina só entraria se sua ficante fosse, e a garota bateu o pé e não se deixou convencer. Voltam os cães arrependidos. Mais um tempo se passou e vinham duas mulheres e um garoto e mais uma vez abordamos com toda educação para não assustar ninguém quando vejo que a mulher mais velha conhecia o jovem com sotaque de mineiro, de longa data pelo visto, e ela concordou em entrar com ele. Eu consegui uma boa conversa com a loira mais nova, achou graça do meu cabelo trançado, me achou parecido com jogador de futebol, com cantor de hip hop, ficou empolgada, mas... Mas acabou entrando com seu amigo para ele pagar mais barato. Todo solícito ele disse que se valesse ele entraria com um dos três solteiros, de preferência eu. Sim, ele era gay. Lá se foram os dois casais e agora éramos dois solteiros patetas, o paulista logo desistiu e pegou sua moto e sumiu. Agora o pateta era eu; numa noite de calor infernal, já tendo andado feito um doido, parado em frente a uma casa de swing àquela hora. Que horas devia ser? Não importava tanto, eu só queria entrar e poder refrescar a cabeça antes de qualquer coisa. Fiquei feliz ao sentir algo vibrando na minha bunda. Calma, era o celular tocando no bolso de trás. Eu havia convidado uma colega, a Débora, e finalmente ela estava chegando. Dessa vez não quis ficar relaxado, às vezes acho que o azar espreita a esperança. Ainda fiquei rodando no meio da Praça XV até encontrá-la, pois havia saltado, mas não conhecia bem a localização. Para encurtar um pouco a história e poupar o leitor de coisas menores que asseguro que não farão falta e também porque já sinto um ritmo lento demais neste texto, vamos direto lá para dentro. Eu realmente fiquei mais aliviado ao aproveitar do ar-condicionado; o alívio só não foi maior porque a minha dor de cabeça estava mais forte. Já não tinha ninguém na pequena danceteria da entrada, o tom azulado e preto com uma parede toda em espelho parece aumentar o espaço que se tem, mas a casa é grande para cima, tem cinco andares. Subimos e após um pequeno corredor onde já se via um casal numa suíte cuja porta tem uma pequena grade para exibir para os de fora, a suíte ao lado trancada para os mais reservados e a dark room estava fechada para obras, encontrei minha amiga na boate. Este é o ambiente mais social da casa, jogo de luzes e laser, DJ a noite toda, shows com strippers, bar e às vezes algumas pegações mais quentes nos sofás que contornam a pista de dança. Tomamos uma bebida, a Débora ainda estava estranhando um pouco o lugar, mas já sorria. O que era bom sinal. Subimos mais um curto lance de escada e encontramos todas as suítes ocupadas, até poderíamos entrar e participar ou ter nosso momento a dois ali no mesmo espaço, mas ela preferia a sós. Enquanto isso eu suava mesmo no ar-condicionado mais forte e já começava a ficar tonto devido à dor de cabeça. Eu disse dor de cabeça? Esqueceram uma britadeira ligada no lado direito da minha cabeça. Novamente desci as escadas, preferi usar o banheiro individual, pois sabia que não viria algo bom e odiei o fato daquele lugar ter escadas para todos os lados. Vou poupá-los de descrever os próximos acontecimentos, não é necessário e creio que concordem comigo. Lavei o rosto e senti que estava despertando do transe que aquela dor me proporcionara, voltei ao andar das suítes e encontrei minhas duas amigas no mesmo quarto, outro casal se esfregando na outra ponta da cama. A Débora estava animada e à minha espera, mas eu não estava com este pique. Justo numa hora daquelas eu tinha que passar mal? Então resolvi exercitar meu lado vouyer e vê-la com outros um, dois, três, quatro na sequência. Recebi um belo agrado da minha amiga aniversariante e fiquei bem mais animado e pude me divertir. Até que enfim! Eu estava lá, fazendo o que queria. Mas como não era mesmo minha noite, só consegui o basicão com as duas e fiquei muito enjoado. O resto da noite até correu bem, foi divertido e engraçado. Já quase pela manhã saímos todos juntos e só então a dor parou. Poucas pessoas na Central do Brasil, ainda não eram 4 da manhã e não tinha van para mim, que ótimo. Vi um rapaz sentado na calçada e resolvi puxar papo, já que ia ter de esperar mesmo. Percebi que ele não tinha dois ou três dentes, pouco depois percebi que ele tinha aqueles saquinhos de balas de chicletes e vendia em ônibus. Percebi que ele tinha algo a dizer; tinha necessidade de dizer a alguém. De início comentamos coisas banais, falamos do horário e da falta de transportes, falamos de nossos infortúnios e foi inevitável falar de violência. Quando ele discordou do que eu dizia, achei que ele poderia estar insinuando que não era contra uso de drogas ou assaltos, e fiquei imaginando se depois daquela noite terminaria sendo assaltado sentado na calçada deserta, mas ele me surpreendeu. Eu contei sobre um amigo da infância que nos distanciamos e ele se tornou bandido, foi solto a pouco tempo. O homem começou a me dizer que para ele ainda somos amigos, no passado que temos dentro da gente. Com falhas nos dentes e em seu português bem simples Deivison disse achar que mesmo com as diferenças que eu possa ter do meu amigo ou de qualquer outra pessoa, nós podemos ter alguma relação e é isso que nos faz evoluir como pessoas. Começou a dar seus exemplos sobre o que ele acha do mundo: - O problema é que isto acontece em toda esquina cara. Você vive no lugar desde que nasceu e acha que ali tá seguro, que tá tudo bem, mas o João tá ali na esquina fazendo a vida dele. Aí de manhã cedo o José vai comprar pão na esquina, certo; aí o João em vez de pensar que pelo menos o José tem um trocado pra comprar seu pãozinho então eu vou ter o meu também. Não, ele já pensa que o José vai comprar pão todo dia, então ele tá com dinheiro; vou lá tirar dele porque eu não tenho. O mundo é assim meu irmão, a gente tem que fazer evoluir, é por isso que eu antes de qualquer coisa já odeio, sacou. Porque quando eu amava não fazia nada, por exemplo: Eu amo Maria, talvez Maria me ame, mas o quanto eu pudesse dizer isso pra ela não ia mudar nada, não ia fazer ela me amar mais. Quando eu só amava as coisas eu não fazia nada. Mas agora quando eu odeio, eu quero fazer alguma coisa para mudar. Eu acredito nisso, o ódio é o poder que pode mudar alguma coisa nesse mundo que a gente vive. Foi surpreendente e desolador ouvir aquilo. Estava ouvindo alguém que precisava se expressar, pois ele falava quase que ininterruptamente, e demonstra assim um pouco da visão de pessoas que considero distantes de mim, de uma realidade que não é a minha. Ele falou do ódio como o que motiva a mudança, ódio como o que serve de escudo e como arma para lidar com os enigmas, as imperfeições, as incompletudes. Fiquei intrigado com isto, ao imaginar diversas pessoas por aí desfavorecidas de tantas maneiras, pessoas de longe e de perto, pessoas de realidades diferentes ou semelhantes pelas quais eu passo todo dia, toda noite. Além disso tudo, fiquei com umas coisas engraçadas na cabeça, como quando ele foi dar um exemplo de rua e disse Rua 13 de fevereiro (dia e mês do meu aniversário), e uma outra hora ao falar de si me usou como exemplo e me deu 22 anos (é a idade que tenho). Deivison falou também que tem um filho de oito anos, o Richard, e que às vezes se desespera diante dele, diante do choro, e eu o vejo da mesma forma diante do relógio da Central, perdido na janela da van, e diante do mundo. Cheguei ao ponto onde saltava e me despedi, ele me agradeceu pela conversa e me desejou sorte. Como prometido, citei você e seu filho no meu texto, mas sei que você nunca lerá; estará por aí quebrando sua cabeça com o mundo.